Novos tempos. Novos hábitos.
Era uma tarde de domingo quando o
telefone tocou.
- Feliz aniversário para mim, feliz
aniversário para mim... – cantava uma voz do outro lado da linha. - Oiiiiê!
Tudo bem?
Levei alguns segundos tentando
lembrar quem era. Revirei a memória tentando associar aquela voz a um rosto
conhecido, busquei em todas as gavetinhas do cérebro por uma pista e nada.
Desisti. Afinal não poderia ficar
muito tempo mudo ao telefone.
A memória da gente, às vezes, nos
prega peças. Certa vez caminhava pela rua pensando na vida quando alguém segura
meu braço:
- Não! Você por aqui! Cara, quanto
tempo faz, dez anos? - diz uma voz entusiasmada.
Olhei espantado para ele. Não fazia a
menor ideia quem era.
- Ah, oi, tudo bem? – respondi
abrindo um largo sorriso. Era isso ou perguntar seu nome.
Se passar pela cabeça de alguém que
sempre faço isso, confesso, sempre faço isso!
Diante do abraço esfuziante que
recebi fiquei indeciso entre retribuir ou pedir socorro. Optei por abraçá-lo
com o mesmo entusiasmo, incluindo aqueles tradicionais tapinhas nas costas.
Conversamos por uns dez minutos sobre
vários assuntos, sobre a turma, sobre namoradas do passado, até de velórios
falamos. Por fim nos despedimos prometendo não perder mais o contato. Até hoje
tento lembrar quem era.
Coisas da vida.
- Nem faz ideia quem é, né! –
continuou aquela voz feminina, parando de cantar e depois emendou: - É a
Abigail, bobo! Lembra? Da faculdade.
Claro que eu lembrava. Como poderia
esquecer aqueles lábios carnudos, aquele gingado maravilhoso ao andar,
aquelas...
- Você vem, né? – disse Abigail em
voz chorosa interrompendo meu devaneio libidinoso. – Sem você não vai ser a
mesma coisa, já estou confirmando aqui na minha listinha! Passo o local pelo
WatsApp. Tchau!
Desliguei o telefone com um sorriso
nos lábios. Ela ainda se lembrava. Foram somente uns beijinhos, umas
apalpadelas... Anos se passaram e ela não esqueceu. Ai, ai, como é chato ser
gostoso!
Alguns dias depois recebo a data,
hora e o local do evento. Abigail escolheu um dos melhores restaurantes da
cidade. Fiz de cabeça umas continhas e cheguei a uma idade aproximada dela.
Isso bastava para comprar o presente. E foi o que fiz no dia seguinte. Um
presente simples, mas cativante.
Sexta feira à noite e lá estava eu na
porta do restaurante. O maître me acompanha até o local e vejo mesas
enfileiradas.
Ao centro, Abigail levanta-se e corre
ao meu encontro.
- Não precisava! – diz com uma voz
alegre, mas se apoderando rapidamente do presente.
Ao seu lado um rapaz sorridente me
estende a mão. Era seu namorado. Cumprimento-o educadamente.
Abigail era a única conhecida, mas a
turma era alegre e logo me ambientei.
-Um chopp! – pedi ao garçom me
esquivando de bebidas destiladas e muito mais caras, mesmo diante dos
insistentes pedidos para aproveitar as várias garrafas de whisky e vinho
espalhadas pelas mesas.
O cardápio era daqueles grandes e a
variedade de pratos, excelente. Só olhava o lado direito dele, pensando em
quanto teria que aumentar minhas vendas nas próximas semanas.
Do outro lado da mesa, uns três
metros à minha direita, alguém me observava. O sujeito sorriu um sorriso
amarelo e em troca ofertei-lhe o mesmo sorriso apático. Será que ele percebeu
meu problema? Seria outro dos ex-namorados de Abigail?
Tão entretido estava que nem percebi
o garçom ao meu lado aguardando meu pedido.
- Este frango, por favor.
- Excelente pedido, senhor! –
retrucou o garçom, educadamente. Notei um sorriso irônico em seus lábios.
Durante o jantar, enquanto saboreava
meu frango – realmente estava bom –, não resisto em olhar, entre uma garfada e
outra, os pratos alheios.
Ao meu lado observei um filé o qual
confundi com um paralelepípedo de tão alto que era. Um pouco adiante um rapaz
sorridente e falador retirava a pouca gordura de uma gigantesca picanha e bem
ao longe observei camarões do tamanho de charutos cubanos flutuando num
maravilhoso e, aparentemente, saboroso molho branco.
Não resisti e olhei o prato do
sujeito de sorriso amarelo. Fomos os únicos a optar por frango.
Apesar dos pesares, a noite foi agradável,
isso não posso negar. Satisfeito, com uma coca cola ao lado, continuamos a
conversar sobre trivialidades enquanto sobremesas saborosas eram devoradas
pelos abastados – cheguei a essa conclusão – convidados de Abigail. Recusei
todas.
O maitre se aproximou com a arma na
mão, digo, com a maquininha na mão e aguardava os cartões bancários para
pagamento da conta.
- Mulher não paga! – gritou o rapaz
cujo filé parecia um paralelepípedo e que já mostrava sinais de embriaguez. -
Faz assim, cara, conta somente os homens e divide a conta.
Quase foi aplaudido principalmente
pelas mulheres presentes.
Instintivamente olhei para o sujeito
de sorriso amarelo. Estava com os olhos esbugalhados e não esboçava mais
sorriso nenhum.
A velocidade do pensamento é incrivelmente
rápida. Entre as opções que relampejaram em meu cérebro, a de cortar a jugular
do rapaz com a mesma faca que usou para destrinchar aquele imenso filé foi a
mais amena. Outras, não tão eficientes, mas perfeitamente aceitáveis em
situações como aquela, foram sendo descartadas, uma a uma, inclusive simular um
ataque cardíaco.
Saquei meu cartão e paguei minha
parte na conta. Nem olhei o valor.
Depois fiquei sabendo que se o
aniversariante levasse um determinado número de pessoas ao restaurante seu
prato seria cortesia da casa.
Semanas depois o telefone toca:
- Oi, sou eu – disse uma voz feminina
alegre e festiva. – Meu aniversário...
- Olá! Viajei para a conchinchina e
devo voltar em alguns meses. Após o sinal deixe seu recado. Piiiiii! – disse eu
em voz robótica e desliguei.
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